terça-feira, 16 de junho de 2009

Como acabar com o fenómeno dos talibés escravizados?

Professor do Alcorão, Tcherno Alfa Amadú Mutaro Djaló, nasceu em 08 de Maio de 1973, no Sector de Mansoa, Região de Oio (Guiné-Bissau). É muçulmano de pais muçulmanos. Por motivos económicos e porque a educação religiosa também era prioritária, deixou os estudos oficiais com a 6ª classe, no ano lectivo de 1990/1991. Viveu a maior parte da sua vida em Mansoa, onde se encontra a residir neste momento. Aprendeu o Alcorão e as suas interpretações na Escola Corânica de Mansoa, fundada pelo Mestre Tcherno Djau Djaló, pai do Ustaz Aladje Abubacar Djaló que foi o seu professor. Terminou os estudos do Alcorão em Abril de 1992, obtendo assim o título consagrado de Tcherno (que significa, na língua fula, “mestre” ou “professor”), que lhe permitiu abrir uma outra escola do género em 1999, em Ingoré, a pedido dos muçulmanos locais e recomendado pelo seu professor. Actualmente conta já com seis anos nesta actividade. De regresso à terra natal, para ajudar o mestre na escola, exerce agora a função de porta-voz da Mesquita Dáira Ahlul Fadáh, ao mesmo tempo que cuida da sua família.



A: Tem dado alguns anos da sua vida à religião como professor. Orgulha-se disso?
Alfa Mutaro: Orgulho-me muito. Tenho feito isto com grande agrado. Sinto que tenho dado uma contribuição preciosa à religião e isto porque os ensinamentos do Alcorão deixam qualquer pessoa que os adquiriu com muita fé e muito carinho, pela sua cultura e pela sua pátria. As pessoas também ficam com a consciência de que devem dar, de algum modo, alguma contribuição para a sua religião.

A: Ensinar o Alcorão é obrigatório para qualquer muçulmano ou é só para aqueles que têm esse dom ou domínio?
Alfa Mutaro: De certa forma é obrigatório. Por exemplo, aqueles que não reúnem condições para ensinar devem motivar e encaminhar os mais novos, sob a sua responsabilidade, a irem aprender. Só o professor não pode fazer tudo, portanto os pais e encarregados da educação também têm um papel necessário. Mas ser professor é uma obrigação para aqueles que reúnem condições e habilidade de transmitir os conhecimentos que adquiriram.

A: Oficialmente a lei islâmica tem uma posição sobre a formação?
Alfa Mutaro: Tem sim, porque o Mensageiro de Deus, o Profeta Maomé, diz que adquirir conhecimentos básicos no Islão é obrigatório para todos os muçulmanos e muçulmanas. Diz ainda, numa mensagem a todos os muçulmanos, para irem nem que seja à China à procura de conhecimentos.

A: Revelou-nos que abandonou a escola cedo. Gostaria ainda de aumentar o seu nível de escolaridade?
Alfa Mutaro: Gostaria muito. Aliás, estamos num mundo moderno e tecnologicamente avançado e tenho tido a preocupação de não ficar para trás. Não posso ficar parado. Sou uma pessoa muito ambiciosa, neste momento, estou empenhado em aprender Francês e Inglês. Aprendi também a navegar na Internet.

A: Concorda com a prática de se retirarem crianças às famílias para alegadamente aprenderem o Alcorão noutro país? No seu caso, não precisou de o fazer porque vivia perto de uma escola corânica…
Alfa Mutaro: No meu caso, depois de o meu pai falecer, o meu tio ponderou mandar-me para a Gâmbia ou Senegal, pois o meu pai havia manifestado essa vontade. Mas acabei por ficar em Mansoa, a conselho do Sheique Aladje Abubacar Zaide, mestre de uma escola na Gâmbia, que, na altura, visitou a Guiné-Bissau, pois o que eu ia aprender fora do país também podia aprender aqui. Quanto às crianças saírem do país, isso depende da forma como saem das famílias. Até concordo se for mesmo essa a vontade dos pais e se não mandarem as crianças sem procurar saber se o local para onde vão reúne boas condições. Somos contra nos casos em que são levadas para locais que não reúnam condições condignas.

A: E quanto às crianças talibés, que são retiradas às famílias com a desculpa de que vão aprender o Alcorão e acabam por ser exploradas. Na sua opinião, que entidades devem ser chamadas à responsabilidade perante este fenómeno?
Alfa Mutaro: Em primeiro lugar, devem ser chamadas à responsabilidade as entidades nacionais responsáveis pelos assuntos islâmicos. Em segundo lugar, são responsáveis os próprios pais ou encarregados de educação das crianças.
Os responsáveis pelos assuntos islâmicos no país não têm criado condições para que haja escolas com capacidade para albergar todos os alunos que as procuram, tanto em Bissau como noutras regiões. Não fizeram tão pouco o levantamento de dados sobre o número e capacidade das escolas corânicas existentes no país. É claro que enquanto não houver escolas, e tendo em conta que os muçulmanos têm na mente que é obrigatório os pais levarem os filhos a aprender o Alcorão, vai ser muito difícil abrandar esta situação. Aqueles que não têm meios vão continuar a mandar os filhos para outros países para cumprirem essa obrigação, sem medirem as consequências. Quanto aos pais, realmente um muçulmano deveria actualizar-se sobre tudo que há à sua volta. Na Guiné, temos a Escola Corânica de Mansoa, que tem vindo a formar um grande número de alunos. Se houvesse duas ou mais do género, acho que esta situação seria colmatada. Não há nada que uma pessoa possa aprender no Senegal que não possa aprender na Guiné sobre o Islão. Além disso, na Guiné há a vantagem de os pais estarem próximos e se poderem inteirar da situação dos filhos na escola.

A: O que tem sido feito ou poderá vir a ser feito para acabar com o problema?
Alfa Mutaro: Por um lado, não podemos esquecer a questão da pobreza e da falta de mais escolas corânicas qualificadas, que são problemas que têm que ser colmatados. Por outro lado, é preciso adoptar práticas mais convenientes que resolvam este problema, integrando todos os intervenientes na resolução (chefes das tabancas, mulheres, pais e encarregados de educação, a sociedade em geral, intelectuais, etc.). As organizações que batalham pelos direitos das crianças podem tornar as suas estratégias mais eficazes incluindo as entidades que mencionei atrás na busca de uma solução definitiva. Sempre que forem resgatadas crianças, devem manter uma conversa séria com essas entidades e depois pôr em prática a solução obtida, porque ao serem simplesmente devolvidas as crianças aos pais, estes podem sentir-se injustiçados e até podem revoltar-se e mandá-las de novo.

A: Acha que o Governo, sendo laico, deve fazer alguma coisa?
Alfa Mutaro: Acho que o Governo pode fazer alguma coisa, porque os muçulmanos da Guiné são cidadãos pertencentes a uma comunidade maioritária. Deve interessar-se e debater a causa com os outros intervenientes.

A: Este fenómeno dos talibés afecta, de alguma forma, a imagem da religião?
Alfa Mutaro: Afecta muito, pois simula que a religião é violenta e discriminatória. Mas, na realidade, este fenómeno contraria as nossas intenções. Numa das suas palavras, o Profeta Maomé diz: “quem não respeitar os nossos velhos e não tiver carinho para com as nossas crianças, não faz parte da nossa religião”.

A: Voltando só um pouco à sua vida, tinha dito que o seu pai tinha deixado um recado ao seu tio para o levar a aprender. Do ponto vista do fenómeno que estamos a tratar, não acha que é a mesma coisa que acontece com as outras crianças?
Alfa Mutaro: Pode ser, sim. Só que o meu pai tinha deixado claro para onde é que me deviam levar. Acreditava que as escolas da Gâmbia ou do Senegal) eram de boa qualidade e formavam bons alunos. Mas, apesar do testamento do meu pai, não fui levado porque o mestre compreendeu que era indiferente aprender aqui ou no Senegal.

A: Ainda sobre a sua vida como professor, já lidou com muitos alunos que aprendem simultaneamente na escola corânica e na escola normal do Estado. Existe alguma relação entre as duas escolas?
Alfa Mutaro: Existe uma grande relação sim, apesar de cada país ter a sua língua, enquanto a religião islâmica e o seu livro sagrado se transmitem na língua árabe. Mas o profeta diz: “amar a pátria faz parte da fé”. Se uma pessoa não estudar ou não conhecer a sua pátria, como é que poderá fazer algo por ela? Então um muçulmano deve, como religioso, aprender a sua religião e, como cidadão, aprender ciência para ser um bom quadro e dar a sua contribuição à pátria. O livro sagrado diz: «ensinem aos vossos filhos aquilo que sabem e façam-nos aprender aquilo que vocês não sabem, porque eles vão viver num tempo diferente do vosso».

A: Quer dizer que se deve aprender nas duas simultaneamente?
Alfa Mutaro: Isso mesmo. Deve-se aprender nas duas simultaneamente.

A: Então quais são, na sua opinião, as dificuldades que alguns muçulmanos têm em crer que se deve aprender as duas escolas simultaneamente?
Alfa Mutaro: Cada comunidade tem as suas tradições e os seus hábitos. Mas entendo que é negativa e errada a ideia de que um verdadeiro muçulmano deve aprender só a religião islâmica. É um pensamento desactualizado.

A: Para terminar, quer deixar alguma mensagem?
Alfa Mutaro: Vou agradecer, primeiro, a oportunidade que me concederam para me inspirar sobre este assunto. Depois tenho que exortar os muçulmanos a se organizarem e a serem mais abertos. Por outro lado, quando alguns muçulmanos cometem erros, não se devem condenar todos por causa disso. Isto é um grande erro que se faz. Cada pessoa deve ser condenada pessoalmente e não se deve responsabilizar toda a comunidade muçulmana ou a religião. Por último, peço à juventude muçulmana que se empenhe mais e procure aprender muito sobre a sua religião. A religião não impede que a pessoa resolva os seus assuntos, nem que se ocupe da sua vida particular. Pelo contrário, as pessoas devem actualizar-se, só assim serão boas praticantes.

Por: Amadú Dafé

(foto cedida pelo entrevistado)

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